sábado, 24 de setembro de 2011

Retrato de uma angústia

Sangue, saliva e porra escorriam pelas coxas enquanto a moça se levantava da cama para tomar um banho. Mais uma noite de excessos passara e mais um dia de trabalho se seguia. Os detalhes de seu sonho esvaiam-se aos poucos deixando apenas a sensação de que não tinha sido de todo ruim.
Eram três os tipos de sangue que escorriam. O primeiro era o da sua menstruação, que descia como sempre com a sua precisão suíça. O segundo era o sangue interno de pequenas feridas que ser furor a levava a não evitar. E o terceiro sangue, metafórico, era o que pingava de seu coração. Que apesar de distante, do outro lado da caixa toráxica, deixava ainda assim que seu sangue se juntasse a seus companheiros fugidios.

Os minutos continuavam a se arrastar enquanto ela começava sua rotina diária, já automática. Levantar, desligar o despertador, tirar a camisola suada, entrar no banho, ligar o chuveiro, passar o sabão - dor, feridas abertas - tirar o sabão, se secar (com cuidado), colocar a calcinha de algodão, escolher o vestido, pentar o cabelo, almoçar, escovar os dentes, pegar a bolsa e as chaves, sair pro trabalho.

No metrô, depois de todo esse processo da manhã, ela observava as pessoas ou lia um livro. Qualquer coisa para escapar da própria vida. Dezoito estações depois a vida recomeçava e assim seguia o dia no trabalho.

Uma semana passou e agora eram somente dois os sangues. O das feridas qie ela não se dava o tempo para deixar fechar e o do coração pingando, pingando.

Escreveu um dia em seu caderno: "O amor escorre de dentro de mim num fluxo sem pausa, vermelho. Sem sangue não existe amor." Mas depois não mostrou a ninguém. Nunca achou que alguém se interessaria por umas frases estúpidas sobre amor e sangue. Com certeza acabariam rindo dela, ela pensaria se conseguisse sair do seu tupor o suficiente para ligar para o que os outros pensavam.
O contínuo sangrar de sua alma e corpo acabaram por gerar nela uma dormência - é, acho que essa é a melhor palavra - que não a abandonava nunca. Na verdade nem chegava a ter consciência dela. Só sabia que quase todo dia fazia um desenho no pulso, uma linha com a caneta.
As feridas fecharam porque seu amor estava longe, passou alguns dias sem vê-la. Agora só um sangue escorria e não havia mais saliva e nem porra. Estava vazia, só o sangue do coração continuava a pingar. Angústia. Se olhou no espelho. Respirou fundo e fez o corte. Agora o sangue do seu coração tinha parado de gotejar pelas suas coxas. Jorrava livre (finalmente) pelo pulso, que cansado do teatro da caneta, agora se via feliz.

E ela conseguiu finalmente sentir alguma coisa.

12/02/2011

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